O lugar do saber
Tarcisio Padilha Junior *, Jornal do Brasil
RIO - Durante muito tempo a sociedade foi concebida de acordo com o modelo dualista do ser humano: um grande corpo encarnado na multidão do povo, cuja cabeça era os dirigentes. Os diferentes regimes totalitários do século passado levaram até o extremo do crime esta lógica.
Hoje, o funcionamento do Estado brasileiro nos mostra que, controlando o governo por meio de eleições democráticas, os eleitores controlam cada vez menos a administração – esta, supostamente, deveria ser obediente a eles. De fato, a autoridade política perde a ambição de controlar diretamente as inúmeras decisões necessárias ao funcionamento da sociedade.
De agora em diante, as soluções mais inteligentes não mais são fruto de alguma grande visão ordenadora do mundo, mas efetivamente resultam de um grande número de discretas decisões.
O controle hierárquico e centralizado da administração deve realmente ser substituído por uma supervisão descentralizada e pela concorrência entre as próprias instituições. Assim é que o poder público se dilui em numerosas administrações especializadas, cada vez mais autônomas.
Essa autonomia diante do poder político central é, em certos casos – as agências reguladoras de serviços públicos são um ótimo exemplo –, a condição de sua efetiva credibilidade.
O debate público acerca das decisões emanadas de tais administrações tem que ser suficientemente aberto para que o saber dos novos especialistas institucionais não asfixie, de forma permanente, a percepção crítica do conhecimento, sem a qual todo saber de fato morre.
Em verdade, o progresso do saber limita nosso leque de escolhas, mas queremos estar seguros de que, quando entregamos aos especialistas escolhas que nossa ignorância anteriormente confiava aos mecanismos da política, estamos realizando uma transferência legítima.
A democracia moderna sempre pretendeu afirmar a igualdade de direitos dos cidadãos, mas sua evolução recente está realmente tornando mais visível à desigualdade diante do saber. A desigualdade diante do saber decerto sempre existiu, mas as suas conseqüências práticas eram de alguma maneira, anuladas pela suposta igualdade da própria razão política.
Neste mundo onde a porção do saber aumentou à custa da porção da política, o desafio é preservar pacificamente a característica complexa do saber. Torna-se necessário procurar a compatibilidade entre definições diferentes da verdade, em vez da unicidade do saber universal.
A nova legitimidade adquirida pelo saber não deve conduzir os especialistas a abandonar a visão complexa do saber. Os especialistas devem, também, reconhecer que o uso que se faz de um saber – por definição, sempre incompleto – deve sempre levar em conta os valores da sociedade.
Invocando as contingências de uma economia globalizada, os formuladores de políticas públicas não hesitam em se abrigar em pseudo-saberes para afirmar o próprio poder. Entretanto, a identificação de questões que têm origem no saber graças à criação de autoridades independentes os proíbe de dissimular suas escolhas por detrás de dados técnicos.
Reconhecer o lugar do saber é hoje, na sociedade da informação, um dos fundamentos do exercício democrático do poder.
* Engenheiro
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