"Quem não
escreve
Bem... Perde o
trem!
Blikstein
Certa vez, um apressado
gerente de uma grande empresa precisava de ir ao Rio de Janeiro para tratar de
alguns negócios urgentes. Como tivesse muito medo de viajar de avião, deixou o
seguinte bilhete para a sua recém-contratada secretária:
Quero que você me rezerve,
um lugar, à noite, no trem das 8 para o Rio.
Sabe o leitor o que
aconteceu?
O gerente, simplesmente,
perdeu o trem!
Por quê? Bem, acontece que
Maria, a nova secretária, ao ler o bilhete, franziu a testa e, com uma cara
desanimada e cheia de dúvidas, ficou pensando, pensando... até que, finalmente,
decidiu: foi, à noite, à estação ferroviária e reservou um lugar, para o dia
seguinte, no trem das 8 h da manhã. Cumprida a tarefa, Maria foi para casa, com
um sorriso nos lábios e muita alegria na alma, contente por ter resolvido bem o
primeiro problema em seu novo trabalho. Mas... a sua alegria ia durar pouco! Ao
chegar ao emprego, no dia seguinte, a dedicada secretária teve a estranha
impressão de estar vendo um fantasma diante de si: lá estava o gerente,
tranqüilo, fumando o seu perfumado cachimbo e assinando papeis, em meio a
lentas e gostosas baforadas. Passado o primeiro susto, a perplexa Maria
balbuciou:
— O senhor...
ainda por aqui?
— Então, o
que é que você acha? Onde é que eu deveria estar? — resmungou maquinalmente o
gerente, enquanto, sem levantar a cabeça, continuava assinando papéis e
cachimbando.
— Mas...
mas... o senhor não ia para o Rio hoje?
— Ia, não...
eu vou para o Rio hoje. Hoje à noite, não é mesmo? Não lhe pedi, ontem, para
comprar uma passagem no trem das 8 de hoje à noite? Pois então... — continuou o
gerente, falando entre os dentes, mordendo o cachimbo, com a cabeça enfiada nos
papéis.
Atônita, a secretária, como
fulminada por um raio, desabou na cadeira, diante de sua mesa de trabalho.
Depois, pouco a pouco, foi recobrando os sentidos e recuperando as cores do
rosto, ao mesmo tempo que ia disfarçando o mal-estar, arrumando papéis e
limpando caprichosamente a mesa com um pano úmido.
— Então, Maria, tudo certo com o trem das 8,
hoje à noite, não é mesmo? — insistiu o gerente, mordendo o cachimbo.
— Oi?.
retrucou a secretária, aparentemente calma.
— Estou
perguntando a você: tudo certo com o trem do Rio? — retomou o já intrigado
gerente, levantando a cabeça e encarando a enigmática moça.
— Oi?
— Oi,
oi, oi, que mania do o/ ó essa! Você não podo responder direito, como
gente? Afinal, cadê a passagem? — gritou o agora irritado gerente, que já não
mais cachimbava.
— Passagem?
Mas... que passagem? O senhor só pediu para reservar um lugar... Ah! já ia
esquecendo: olhe, o senhor não leve a mal, por favor, mas... reservar se
escrevo com s e não com z... — explicou Maria, com um ar de professora,
sorrindo e piscando muito os olhos.
— Escute aqui,
moça: não preciso de suas lições! Sei muito bem como as palavras se escrevem! Seus
comentários são perfeitamente dispensáveis. Aliás... essa história de reservar
com s ou com z não me "refresca" nada, agora! O que eu
quero simplesmente é a minha passagem para o Rio, poxa! Pode ser?
— Não, infelizmente,
não pode ser, porque... reservar um lugar é uma coisa e comprar uma
passagem já é outra bem diferente...
Foi então que o gerente esmurrou
a mesa e berrou a plenos pulmões:
— Cheeeeeeega,
pelo amor de Deus! Isso já está virando uma palhaçada! Olhe aqui, mocinha: ontem,
eu deixei um bilhete, pedindo para você me comprar uma passagem para o Rio, no
trem das 8, de hoje a noite! Foi só isso que eu pedi. Tá claro? Mais claro
do que isso daí... é impossível!
Imperturbável, retrucou a
valente secretária:
— Não, seu
gerente, não está nada claro! O senhor está completamente enganado! Não foi
nada disso que o senhor
escreveu!
Não acredita? Pois veja aqui o bilhete! Veja o que o senhor escreveu aí! Leia,
por favor! Olhe aqui: o senhor me pede para reservar... — reservar é com
s, o senhor sabe, né? — Então, continuando: o senhor me pede para
reservar um lugar, a noite... — olhe aqui, seu gerente, veja bem,
o senhor até sublinhou, grifou duas vezes as palavras reserve e à
noite, certo? — Bom, continuando: o senhor me pede, aqui no bilhete, para
reservar, a noite, um lugar no trem das 8 para o Rio, 'tá? E como o senhor deveria
viajar no dia seguinte, então eu fiz exatamente, veja bem, exatamente o
que o senhor mandou: fui à estação, à noite, e pedi uma reserva, para o dia
seguinte, no trem das 8 da manhã para o Rio. Era só o senhor chegar hoje lá, na
estação, um pouquinho antes das 8, comprar a passagem, entrar no trem, pegar o
seu lugarzinho bem gostoso, no meio do vagão. lado da janela e... pronto!
Fechava os olhos, dava uma boa cochilada e... de repente... o senhor acordava
de cara para aquela lindeza de paisagem, o Corcovado, as praias... ai,
aquilo" é bom demais!
De pé, boquiaberto, pálido, o
gerente deixou o cachimbo cair sobre os papéis espalhados na mesa.
— Eh,
espere aí, que cara é essa, seu gerente? O que é que o senhor tem? Não
está passando bem? Quer que eu chame um médico?
— Médico...
coisa nenhuma! Você vai é comprar essa passagem agora, já, no trem das 8 da
noite para o Rio! ...: Já, ouviu? Antes que eu faça um estrago por aqui!
Mais que depressa, a
secretária saltou sobre o telefone e ligou para a estação. Esforço inútil: o
trem da noite estava lotado.
Desta vez. foi o gerente que
desabou na cadeira, a cabeça entre as mãos, chorando convulsivamente e lamentando-se:
— Meu Deus
do céu, que mal que eu fiz pra sofrer assim? Onde foi que eu errei? Me
explique, Maria, por favor, eu lhe suplico: será que eu escrevo tão mal
assim? Meu bilhete está tão claro, tão simples... eu só pedi uma passagem no
trem das 8 para o Rio e veja o que você me aprontou! Agora, eu vou
perder um dos nossos melhores clientes lá no Rio! O que é que vou fazer, você
pode me explicar? Eu não entendo, francamente, eu não entendo: todo mundo na
firma já está cansado do saber quo eu não gosto do viajar do avião, quo ou
só viajo de trem noturno, que sempre me reservam uma cabina com leito, quo eu
adoro viajar em cabina com leito... poxa, mas onde foi que eu errei?
Cautelosa, a secretária
aproximou-se do gerente, devagarinho, c, pouco a pouco, com jeito, começou a
afagar a sua cabeça, enquanto explicava maternalmente:
— Calma,
não chore, não fique triste assim. Vou mostrar direitinho onde foi que o senhor
errou. Calminha. Não chore não, 'tá? Veja, seu gerente, eu não sabia que
o senhor só gostava de viajar de trem, e ainda mais de trem noturno, em cabina
com leito. No bilhete, o senhor não disse nada disso.
Aos soluços, o gerente ainda
tentava argumentar:
— Mas será que
era preciso dizer mais alguma coisa? Estava tudo tão claro, tão óbvio na minha
cabeça... será que a sua cabeça é assim tão diferente da minha, que você
não é capaz de entender uma idéia tão simples?
— Bem, já que
o senhor perguntou, então eu explico: olhe, seu gerente, as nossas
cabeças são muito diferentes sim, é claro! Aliás, não existem duas cabeças
iguais nesse mundo: o senhor tem certas idéias na sua cabeça, eu tenho outras,
o vizinho da sala ao lado já tem outras bem diferentes, e assim por diante. Se
a pessoa não explicar direito o que é que ela quer, ninguém vai adivinhar,
porque os pensamentos não estão grudados na testa da gente, eles estão dentro
da nossa cabeça e nós temos de saber colocar para fora essas idéias. O senhor, por
exemplo, queria que eu comprasse uma passagem, para o Rio de Janeiro, no trem
das 8 da noite, cabina com leito, não é mesmo? Mas acontece que o senhor não
conseguiu passar essa idéia para a minha cabeça, porque, pelo seu bilhete, eu
entendi outra coisa, completamente diferente da que o senhor tinha na cabeça. Quer
ver? Vamos começar por este trecho:
"(...)
me rezerve, um lugar, à noite (...)" Bem, o senhor já sabe
quo reservar é com s, mas deixo pra lá, não ó isso que importa
agora. Há erros mais graves aqui. Em primeiro lugar, se o senhor queria que eu comprasse
uma passagem, o certo, então, era escrever: "compre uma passagem"
ou "providencie uma passagem"! Segundo problema: o senhor não fala em
cabina com leito, mas em lugar, ora, lugar é urna palavra
que pode significar muita coisa, ao mesmo tempo: pode ser uma poltrona de 1.ª
ou do 2.ª classe, no meio ou na ponta do vagão, do lado da janela ou do
corredor, e pode ser até uma cabina com leito! Terceira falha, e esta é de
sintaxe...
— De
sinta... de sintaxe? E eu vou lá me lembrar das regras dessa maldita análise
lógica?
— Não, seu
gerente, sintaxe não trata só de análise lógica... sintaxe é a parte da
gramática que cuida da ordem e das relações das palavras na frase, das relações
entre as frases, períodos etc. Estou falando bonito, não é? é que eu ando estudando seriamente a
língua portuguesa, com um professor muito inteligente (e muito simpático
também!) ...aliás, é obrigação minha saber corretamente o português, senão pra
que serve a secretária? Ah, sim, como ia dizendo, a sintaxe do seu recado está
bem ruim. Se o senhor observar bem o trecho "...me reserve, um lugar, à
noite,..." — acho que o senhor não agüenta mais, não? — bem, como eu
dizia, se o senhor observar bem esse trecho, vai ver que a ordem das palavras
e, principalmente, a posição das vírgulas dão um duplo sentido à frase. O
senhor duvida? Então, veja bem: como há uma primeira vírgula, separando a forma
verbal reserve do objeto direto lugar, e como há uma segunda
vírgula logo depois de lugar, o leitor do bilhete pode juntar reserve
com a noite e pensar que, em vez de reservar um lugar noturno, o
senhor, como autor do bilhete, mandou reservar à noite um lugar... entendeu,
seu gerente? Xi... parece que o senhor não está entendendo nada, ou,
então, não gostou da minha explicação, não é mesmo? Pode até ser que eu
tenha sido meio confusa, mas... vou fazer um esqueminha aqui no papel, pra
ficar mais claro o que expliquei...
Diante do gerente ainda em
prantos, a zelosa secretaria traçou algumas linhas, escreveu algo c depois
exibiu o seguinte esquema: RESERVA – 1 UM LUGAR Á NOITE ( = LUGAR NOTURNO)
— Entendeu
agora, seu gerente? A frase tem dois sentidos. Minha cabeça foi pelo
segundo sentido: por isto é que eu fui à noite, à estação, para reservar o
lugar do senhor. Ah, e uma última falha ainda, para terminar. Me diga uma
coisa, seu gerente! Se o seu trem era o das 8 da noite, por que é que o
senhor não escreveu logo: trem das 20 h? O senhor não acha que muita
confusão poderia ter sido evitada? Portanto, concluindo: com um bilhete assim, com
tantas falhas de sintaxe, de pontuação, de vocabulário, e até de ortografia, eu
nunca ia poder adivinhar as idéias que o senhor tinha na cabeça!
Enxugando as lágrimas e
assoando ruidosamente o nariz, o gerente encarou a secretária com um ar quase
infantil e perguntou, com a maior inocência:
— Mas,
então, Maria, como é que eu deveria ter escrito esse bilhete, afinal?
— Ora, é
muito simples. O senhor podia ter escrito assim... ih! Espere um pouquinho... eu
queria comentar um pequeno problema, ê o seguinte:
quando a gente escreve 10 horas, 20 horas etc, é preciso colocar a
abreviatura correta da palavra horas, isto é: h, como manda a
gramática, certo? Bom, agora vou mostrar como é que acho que o senhor deveria
ter escrito o bilhete:
"Maria:
compre, para mim, uma passagem, em cabina com leito, no trem das 20 h de amanhã
(4.ª feira), para o Rio de Janeiro."
Este ó um
bilhete claro. Aí, eu faria exatamente o que o senhor estava querendo.
— é só isso, Maria? Terminou a lição?
— Quem sou
eu pra ensinar pro senhor! Mas já que o senhor perguntou, eu preciso ser bem
honesta: não terminou ainda não! Falta só uma coisinha... agora, eu só digo se
o senhor não ficar bravo...
— O que é,
Maria, o que é que está faltando ainda, poxa?
— Bom, eu
achei, seu gerente, eu achei que o bilhete estava um pouco seco. Da
próxima vez, se o senhor quiser me deixar bem contente, o senhor poderia
colocar um por favor ou um muito obrigado, sabe, alguma
palavrinha assim, só pra me agradar. A gente faz o serviço com mais boa vontade.
Quer ver como ficaria mais bonito? Veja, seu gerente:
"Maria: por favor, providencie, para mim,
uma passagem em cabina com leito, no trem das 20 h de amanhã (4ª feira) para o
Rio de Janeiro. Muito obrigado."
— É, tudo
muito bonito, muito claro... mas, agora, não adianta mais nada... eu já perdi o
trem e, pior ainda, perdi o cliente... — murmurou o gerente, enfiando
novamente-a cabeça entre as mãos.
— Como não
adianta nada? Adianta, sim senhor! O senhor perdeu o trem, perdeu o cliente,
porém... porém... aprendeu uma boa lição. Como dizia o meu pai, lá no interior
onde a gente morava: "Quem não escreve bem... perde o trem!" —
proclamou a vitoriosa Maria-.
A história termina por aqui.
Não sabemos se o gerente aprendeu a lição de sua prestimosa secretária. Mas
você e eu, caro leitor, podemos tirar muitos ensinamentos deste caso tão... “dramático”.
Parece ter ficado claro que, se não escrevermos bem, perderemos não só o trem,
mas uma porção de outras coisas bem preciosas. Cabe, então, antes de mais nada,
esclarecer uma questão básica: o que é escrever bem!
É o que veremos no capítulo
seguinte.
Direção
Benjamin Abdala Júnior
Samira Youssef
Campedelli
Preparação do texto
José Pessoa de
Figueiredo
Sueli Campopiano
Arte
Coordenação o projeto
gráfico/miolo
Antonio do Amaral Rocha
Ilustrações
Marcus de Sant'Anna
Arte-final
René Etiene Ardanuy
Capa
Ary Normanha
Para
Reveca Blikstein
ISBN. 85 08 02 3 95 2
Todos os direitos
reservados
Editora Ática S.A.
Rua Barão de Iguape, 110
— CEP 01507-900
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São Paulo (SP)
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